quarta-feira, novembro 22, 2006

Branca


Ela era macia e branca. Muito mais que qualquer mulher comum. Ela era maleável. Tão, tão boa de tocar. E era normalmente entregue a qualquer coisa. Dançava de olhos fechados, estremecia com os cheiros quando cozinhava, chorava e ria com os filmes como uma criança. Mas na hora do sexo, na hora dessa arte secreta em quartos fechados, ela se superava. Porque ela ia e vinha como se fosse feita de água. O amante movia a massa macia de sua carne com renovada surpresa – ela não resistia a nada, ela ia, ela abaixava, ela dobrava. Ela era toda movimento no pulso do desejo do seu homem. E seu gozo... seu gozo era um borbulhar. Como se um milhão de borboletas lhe subissem todas ao mesmo tempo de entre as pernas por dentro do peito e lhe saíssem pelo topo da cabeça fazendo formigar sua alma. Seu amante? Todos eles sempre souberam que podiam encontrar mulheres outras, mais habilidosas e mais belas. Mas nunca uma que se fizesse tão parte da sua carne como ela.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Querer



Ela queria fundir seu espírito no tronco de uma árvore e virar seiva. Queria ter a liberdade de se esconder no escuro das raízes nos dias de medo, ver a vida correr tranqüila da altivez do tronco nos dias normais. E sim, nos dias de alegria intensa, percorrer inebriada pelas follhas em suas alturas de galhos. Mas, principalmente, queria um outono glorioso do prazer das folhas vermelhas brilhando contra o céu azul, um protesto mudo de glória e de vida.

terça-feira, outubro 10, 2006

Sonho

Era uma menina que tinha muito medo de entrar na escola. E todo dia ela ia até a porta, hesitava, hesitava e acabava voltando para casa. Dependendo do dia e de quem a acompanhava, cercada de condescendência ou de repreensão. Era mais forte do que ela, era mais forte que seu corpo. Era um medo que a destruía de dentro, que a impedia de dar o passo à frente, que a fazia sentir desamparada e impotente.
Mas então ela descobriu que era uma mulher adulta. Que era maior que a escola, tão grande quanto os que a acompanhavam e que podia entrar sem medo, que não havia nada lá que a pudesse prejudicar ou ferir.
Percebeu, então, que o mundo oferecia lugares muito melhores para ir.

sábado, setembro 23, 2006

Não sou anjo nenhum


Foi a primeira frase que ela me disse. "Não sou anjo nenhum e jamais disse que era." Modo estranho de começar um depoimento. Depoimento, de resto, todo estranho. Por isso agora, expediente acabado, escrevo nesse quarto de hotel. Para tirar de dentro e dormir. Desintoxicar.
Não era um anjo, mas era verdade que demorou na vida para conhecer o pecado. Foi mais, mesmo, quando o conheceu. Antes, seus pecados eram a preguiça - para a qual logo não sobrou muito tempo, filha que era de uma família de pescadores. E um tiquinho de gula, quando a mãe fazia doce, que ela adorava. O resto não conhecia, não. Cresceu reta na vida de sol e trabalho, igreja aos domingos, aprender a rezar para que o pai e os irmãos sempre voltassem do mar. Mas um dia ele chegou.
Luxúria, diria eu, ela usou "desejo". E cobiça. Quando aquele homem de pele clara e cabelos louros chegou, ela só tinha quinze anos, mas o quis de imediato. Ela nem sabia bem pra que, foi descobrir direito depois, mas queria. Queria a voz dele, aquele sotaque que raspava nos erres e que amolecia suas pernas, queria os braços fortes e mais tarde, quando descobriu que os olhos dele eram verde-água e não escuros como o de toda gente, quis aqueles olhos para ela também. E desde o dia que o viu, só o queria mais ver. Mais e mais. Entrou numa consumição.
Até a mãe a deixou um dia sem trabalhar, a encontrou com febre. Mas a febre só fazia aumentar... À tarde disse que estava bem e pediu para ir à venda. Foi nesse dia que ela se fez notar - daí, para ele cair na sedução fácil da carne virgem que se oferecia, foi um pulo, questão de dias. Poucos dias.
Ela já tinha ouvido falar que ele tinha uma mulher, branca como ele. Mas não importava, nada importava. Era atrás dela que ele ia - e atrás das dunas de areia branca ela descobriu para que mais o queria. Descobriu que também queria o peso daquele homem entre suas coxas, que queria seu hálito e o roçar daquele cabelo fino no seu rosto. Tudo isso é comum na vida de todo mundo, mas o olho brilhante daquela menina dizendo "eu descobri o céu...", sem vergonha nenhuma, numa sala só de homens, é coisa que mexe com a gente.
A família, por sorte, era muito quieta, não gostavam de fofocas e a mãe não ia muito prosear na vila. Mas a mulher do gringo, não. Começou a assuntar, a querer saber, a seguir o marido. E, para desespero dela, o homem começou a se apavorar. Não aparecia a encontro marcado, propunha lugares cada vez mais ermos. "Por que não larga dela de uma vez e fica comigo? Porque tem tanto medo? O que te prende a essa mulher?" Ela perguntava, cada vez mais irada e ele ria nervoso, dizia que eram coisas que ela não entenderia... Até que chegou o dia que ele não apareceu mais e mandou para ela que eles deviam esperar a mulher se acalmar. "Até quando?" Ele nunca respondeu.
Ela chorou, chorou, chorou uma noite inteira no quintal, alegando para a mãe que estava com falta de ar e ia sair do quarto. A mãe estava tão cansada que nem perguntou. Procurava o gringo por tudo, mas ele desviava dela.
Até aquela tarde. Ela chegou em casa da venda e estava tudo parado, estranho. Ela sentiu um arrepio. Quando entrou, na sala de chão batido, a gringa olhou para ela com ar de vencedora. Levantou e saiu, nem se despediu. O rosto da mãe estava lavado de vergonha. Aquele dia ela apanhou da mãe, até o pai chegar. Então apanhou do pai, até ele se cansar. Eles não falavam, não xingavam, só batiam. Gente quieta. Dava para ver que ela falava sem ódio deles. Deles.
Ela disse que foi nessa noite que ela aprendeu a odiar a gringa, de quem antes só tinha raiva. Um ódio feio, grande, descomunal. Daí em diante ela perdeu a expressão e voltou a ter a cara que tinha no começo do depoimento.
Daquele dia em dia ficou meio que presa na casa dos pais, sem muita chance de saída. Na cidade inteira chamavam ela de "a puta do gringo" - faziam em voz alta o que antes cochichavam. Para a família era vergonha grande, era filha de nunca mais casar. Mas ouviu um moleque comentar com um irmão que os gringos iam embora. Foi demais para ela. Passou aquela noite inteirinha pensando, olhando pro teto. Sem uma lágrima. Fugiu enquanto a mãe lavava roupa, com a faca de abrir peixe. Se esgueirando pela cidade, entrou na casa dos gringos pela janela e estripou a mulher branca como se fizesse isso de pequena.
Nos descreveu o modo como a derrubou com um golpe de licoreira e cada um dos doze golpes como se fosse ontem. Sem emoção, sem nojo, sem alegria.
Quando alguém disse, irônico, que ela não parecia se arrepender, ela não demonstrou vergonha. "Só lamento ter terminado de me separar do gringo para sempre. Mas ela tinha de morrer. Mas quando me trouxeram pra cá, sabia que estava perdida pra sempre. Daqui ninguém sai. Nem ninguém me visita, nem ele, nem mesmo minha mãe. Estou aqui há quanto? Três anos? Mas matava, matava ela de novo. E ainda mais devagar. Maldita."
Quando ela disse maldita, seu olho quase brilhou e me deu medo. Não, ela não era nem um anjo. Mas naquela determinação metálica, tinha algo nela que ia além do humano.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Samara quer saber

O que vocês estão achando do blog? Falta algo que esperavam?
E a história de W.? Estão gostando? Cria expectativa? Banal demais?
E os demais contos, o que acham?
De qual estilo gostam mais mais: os "contos" ou a história?
Sobre qual assunto gostariam que eu escrevesse?

Respondam nos comentários, ok? Sei que vocês são poucos ainda, mas os quero bem atendidos.

A Gerência agradece a atenção. ^_^

(P.S.: Não quero falsos elogios e falo sério. Ego de escritor é frágil mas nem tanto. Quero melhorar e, para isso, críticas são mais que bem vindas, mais que rasgação de seda. Expressem-se, sim?)

segunda-feira, setembro 18, 2006

De alguém que perdeu o próprio mundo

Mensagem encontrada numa garrafa, na orla do mar.

"Caro amigo desconhecido,

Sei que me perdi do meu navio e dos meus, mas não me lembro quando. Fui encontrado numa praia muito bonita, mas também não saberei escrever seu nome. Sim, essa carta é inútil. Não haverá resgate, nem mesmo há porquê. As pessoas gentis que me acolheram me tratam muito bem e dizem que eu sempre estive aqui, que sempre nos conhecemos. Eu sorrio e finjo acreditar, mas não me lembro deles nem um pouco. Eu os trato com gentileza, mas não sinto nada.
Na verdade, esse é o maior problema sobre minha condição. Não sinto nada em tempo algum, por motivo algum. Nada me extasia, nada me irrita, nada me fere também. Na verdade, mesmo essas palavras me dizem pouco ou nada.
Tem duas coisas que eles dizem que fazem comichar algo aqui no meu peito, mas a verdade é que, mesmo eles explicando, as palavras não fazem sentido na minha cabeça. Uma é perda, que me dá a comichão e me deixa com olhos perdidos no mar - nem eu sei bem porquê. A outra é amor, que chega a alterar minha respiração. Quase sinto uma ardência, sinto que sei o que é, mas não consigo ir além.
Realmente, não sei porque escrevo. Não procuro resgate, não sei qual é minha terra de retorno. Acho que procuro alguém tão perdido quanto eu.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Batei e trancar-se-vos-á

Para sempre
Se manterá fechada e imóvel
Ainda que você bata por noites e noites
Até você manche tudo de sangue vivo, expondo em carne viva o nó dos dedos
E deixando pedaços das unhas entranhadas na madeira
E mesmo que tente fazer entrar pelas frestas os gritos de dor
E passar todo seu amor imenso fracionado pelo buraco da fechadura
A porta nunca, nunca se abrirá.

Porque esse mundo é árido e você está sozinha
E em muitos cantos não sobra espaço para o amor cristão, nem para o perdão
Porque existe recantos para onde os anjos não ousam olhar.

E neles eu habito...

quarta-feira, setembro 06, 2006

Zutto



Ela raspava, raspava, mas de nada adiantava. Continuava a lhe crescer das axilas, do rego entre os seios, do meio das nádegas, do sexo e tomava tudo. Não, não eram pêlos. Estes, ela não tinha nenhum. Era musgo. Um musgo verde e macio que não parava de tomar conta do corpo dela. Já tinha brincado de deixar só um pouquinho sobre os mamilos ou no lugar dos pelos pubianos. Mas a verdade é que não o dominava.
O musgo crescia a partir dos lugares sombreados e ia tomando o corpo todo. Cada pedacinho dela. Por isso aquela agonia, aquele medo.
Ela se "depilava" todos os dias. Mas sabia que o musgo continuaria a crescer.
Seu maior medo era ficar inválida e aquela massa verde tomar conta de todo o corpo dela, do rosto. De mudar a forma de seu corpo e a deixar muito parecida com as rochas recobertas de musgo que via no parque. (Seriam mesmo rochas?)

sábado, setembro 02, 2006

Da transparência


Ela lavava as janelas dele todo santo dia, menos aos domingos. No início, apenas achavam divertido que ela lavasse com tanto esmero as janelas perante as quais o homem cego se postava muitas horas, todos os dias. Alguns a achavam apenas extremamente honesta, porque ela tinha tanto o que fazer, mas deixava as janelas um brinco. Obviamente pensavam que, se ela relaxasse um pouco, não faria a menor diferença.
Mais confusos, muito mais confusos eles ficaram quando alguém descobriu que ele não pagava para que ela limpasse as janelas. Era algo que ela fazia espontaneamente quando saía da casa ao lado, que faxinava por dinheiro. No início, foi só espanto. Depois, ela recebeu mais propostas para trabalhinhos gratuitos e recusou a todos. “Mas, por que não? Nos conhecemos há tanto tempo! Para o cego você faz de graça! O que custa me fazer um favor?” Chegou a perder um ou outro trabalho por causa disso. Resistiu, entretanto.
Quando eles se casaram, no final daquele ano, as piadas e risadas não foram poucas. De certo modo, todos ficaram felizes, não apenas por terem do que rir, mas pela certeza de que finalmente tinham entendido as coisas.
Mas, querem saber um segredo? Fora aqueles dois, felizes na casinha que agora era deles, ninguém jamais entendeu nada.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Marcas



Ela era de um povo nômade e, sim, ao contrário do que diziam os antropólogos, ainda andavam pela cidade, tocando e dançando para tirar o sustento. Não porque fosse só o que restava, mas porque preferiam desse jeito.
O pai tocava algo com cordas, o irmão, um instrumento de percussão e cantavam. Então ela vinha e dançava. Com um vestido longo e rodado, sempre encarnado, roxo ou negro, ela vinha e girava, girava. Fazia doces movimentos de braços, passos matreiros que nunca iam para onde pareciam levar. A flexibilidade da cintura lhe dava um encanto de matar. Começara bem moça, como a mãe, e dançaria até morrer, exatamente como ela.
Outro detalhe adorável era a rosa que sempre levava no decote - e que os brancos da cidade achavam que era algo folclórico ou que fazia parte da dança. Não era. O que nem os seus sabiam é que ela levava sempre uma flor ao peito para lembrar que tinha o coração marcado, cheio de cortes abertos que jamais cicatrizaram. Um dia, um moço moreno, de fala mansa e jeito de gato deixara nele os veios abertos de uma pata de tigre. Entre os brancos matreiros que a requestavam ou entre seus homens que a cobiçava por esposa, levava consigo a rosa e se lembrava que o máximo que podia dar era um sorriso de quem sente muito...

sábado, agosto 26, 2006

Asas invisíveis

Então ela descobrira, depois de um tempo enorme, que o segredo de toda força possível que, é verdade, não é muita para nenhum de nós, mas enfim, é a força possível, era não prender. Não se preocupar, não tentar dominar, não tentar controlar. Não controlar o erro, a falha, a perda, a dor, o ódio. Deixá-los irem e virem como foram feitos.
E ela passou a andar solta pela cidade e a sentir de outra forma a cor do céu e o cheiro das ruas e as pessoas todas. Porque não precisava mais controlá-los com adjetivos como "fantástico", "tristonho", "delicioso", "nojento", "simpáticos"... Ela apenas os sentia como eram sem tentar classificá-los. Essa experiência libertava tanto, dava tanto prazer mesmo quando causava desconforto que foi se tornando um vício.
Quando se deu conta, cada um de seus passeios se assemelhava a um pequeno vôo.

sexta-feira, agosto 25, 2006

Do reverso


Ela golpeou sem dó. Na primeira vez, pôs a adversária, que lutava sem armas, no chão. Então ela golpeou de novo e de novo e uma vez mais. Ver o líquido vermelho jorrar sem nada que o contivesse virou um vício. No chão, dobrada sobre si mesma, ela golfava sangue, mas, estranhamente, não morria.
O que a outra não podia imaginar era que, lentamente, a morte lhe chegava certeira - escorrendo lenta pela longa lâmina da espada. Contrária a tudo que ela pudesse ser, a morte para ela era o sangue da outra.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Das luzes, do frio, do medo


Cada luz na cidade era uma lâmina e as pessoas não falavam sua língua. Sozinha, sozinha e cada coisa nesse mundo a fazia sofrer mais e mais.
Ela corria, corria, a cidade era bela, mas doía. Era tanto, tanto frio. O concreto era frio, os metais eram frios, o vento. A cidade era toda tão dura e impenetrável e as pessoas falavam aquela algaravia que ela jamais poderia entender. Um canto quente, era tudo o que ela queria: calor e um esconderijo desse mundo que doía.
Quando o enviado veio, ele não a tirou da cidade. Ele não trouxe alguém que a aconchegasse. Nem a levou para um esconderijo. Ele apenas puxou, docemente, o fio de aço que prendia todos os seus nervos e a fazia ver tudo pelo olho da tensão, do medo. O fio escorregou e escorregou por dentro dela, finíssimo e sinuoso, por um longo tempo. Quando ela abriu novamente os olhos,conseguia ver na cidade, um lar. E nos homens, seus irmãos.
E ele voou para longe com o aconchego da missão cumprida.

Instrumento

Ela havia prometido nunca mais fazer aquilo. Guardara o instrumento embaixo de um móvel e nunca mais tocou nele. Mas o amor tem razões e se move dentro da gente.

Era uma noite triste e fria e ela estava completamente sozinha. O mundo a havia estapeado novamente. Tudo nela era cacos. Foi então que, sem conseguir ouvir as promessas que fizera a si mesma, ela se agarrou a ele. Pegou-o de sob o móvel onde o escondera e o arrastou para cima da cama, com ela.
Com o instrumento, veio todo o amor e todo o sofrimento. Mas, principalmente, toda a força do sentimento. Chorou, falou com ele, colou sua pele quente de lágrimas sobre a pele dele. Colou-se. A pele parecia quente como a do amante que um dia os possuíra: a ele, instrumento; a ela, amante.
A força do sentimento foi tão grande quanto o desejo de fusão - no instrumento e nela havia ainda amor suficiente para isso. De um modo que não pode ser explicado, fizeram amor. E ela nunca mais foi encontrada - tudo o que se achou foi um derbake sobre a cama, com uma estranha rosa impressa na pele transparente. Mas a sensação que se tinha é que ela havia nascido lá dentro.