terça-feira, janeiro 30, 2007

O Vale dos Pulsares Amputados

Em um lugar distante em outra dimensão, onde a luz do sol jamais chega, vivem criaturas humanóides que gemem e sofrem. Digo humanóides porque parecem humanas e não são feitas de matéria, mas de energia. E porque podem ter as formas um pouquinho alteradas por sua atividade - alguns têm os olhos desmesuradamente caídos de tanto chorar, outros têm os braços num verdadeiro xadrez de tantos arranhões, outros, uma reentrância na testa de tanto batê-la contra objetos.
Eles vivem sob a terra, em túmulos, porque são os filhos de nossos amores sepultados ainda vivos. Cada amor abortado pela falta de coragem cria uma criatura no vale. São os pulsares amputados, as paixões contidas, um monte de vida e de energia estancada a ferro e fogo.
Os seres no vale são crias da nossa energia, uma parte de nós que se perdeu para a dor. Por isso cada vez que "superamos", que um amor desses "acaba" fica no nosso peito um eco, um vazio - porque parte de nós ainda sofre, por lá.
E não pense que por não serem humanos eles sofrem menos. Padecem mais porque agüentam mais. Doem. Rasgam. Gemem. Gritam. Urram. Babam. Choram. Lamentam. Clamam. Arranham. Caem. Exasperam. Sangram.

Agora que você sabe, me responda: quantos amores sua covardia mandou para o vale dos pulsares amputados?

domingo, janeiro 28, 2007

Ela e o vento

Ela se alimentava do vento. Desde pequena tinha o costume de se postar em pé no alto do morro e deixar o vento passar por ela, braços e pernas abertos. Fazia isso praticamente todos os dias e nunca passou pela cabeça de ninguém proibir, já que o hábito não parecia trazer mal algum.
Quando ela começou a ficar mocinha, entretanto, o pai encasquetou. Achou que ela ia se encontrar com algum rapaz, com a desculpa de ir "sentir o vento". Um dia proibiu, ela ficou uma semana sem sair. Mas ficou de tal maneira irritada, um tal de não comer e não beber que o pai achou melhor liberar. Ela podia ir, mas a mãe tinha que ir junto - não demorou muito para eles verem que não havia rapaz algum, era só a menina no vento, descabelada, com cara de criança feliz.
Ela não tinha muitas amigas e a verdade é que muitas das meninas da idade dela a achavam muito esquisita com essa mania de vento, precupadas que eram em manter penteados e chapinhas. Mesmo sem amigas, ela não era mais infeliz do que as outras garotas - tinha seus pensamentos, sua vidinha, seu vento. E ventava muito naquela cidade, graças a Deus.
Conheceu um moço na quermesse e mais tarde ele se tornou seu marido. Desde o namoro ficou claro para ele que ela seria a mais dócil das mulheres, contanto que ele não implicasse com as suas manias. Ele não só não implicou como foi o primeiro a prestar atenção. Que ela parecia enfraquecida quando não podia ir sentir o vento. Que quando ventava bem ela ficava mais feliz. Que nos dias sem vento ela ficava numa irritação tamanha que ele andava na ponta dos pés. E nos dias de grande ventania, de tempestade, ela ficava numa euforia que o amor dos dois à noite fazia os móveis tremerem.
Quando ela ficou grávida, ia pegar o vento de barriga de fora. E quando a criança nasceu, ia constantemente pegar vento com ela no colo. Todo mundo sempre dizia que assim o bebê viveria resfriado, mas ela afirmava que era o contrário. Quanto mais ele tomava vento, mais forte ficava. E se estivesse doente, se curava no vento. E se não curasse, a mãe voltava para casa sabendo exatamente o que fazer para ele ficar são.
O filho cresceu forte e se tornou um homem bom. Ninguém tinha coragem de ir contra as manias da mãe, mas ele ficava chateado porque sabia que, pelas costas, diziam que ela era uma bruxa. Quanto mais ela envelhecia, maior era a chacota com a velhinha que ia se estender todos os dias ao vento. Ele lamentava. Não sabia o que a mãe era, mas, como o pai, observava. Sabia que tudo quanto ela fazia, funcionava. E quando não estava bem, ia pegar vento também - mas de madrugada, para que ninguém o visse.
E no dia em que ela morreu, ninguém acreditou no que houve, porque só o filho viu. Ela estava sentindo seu vento, exposta, quando passou mal. Encolheu-se no chão. O filho viu de longe e se preocupou, foi ver o que era. Antes que ele conseguisse chegar perto, ela começou a despetalar, como uma flor. E as pétalas do que ela fora seguiram com o vento, seu companheiro.