Sempre quis escrever sobre ela. Mas tinha medo de expor a moça. E, mais ainda, tive medo da dor que isso me trazia. Mas acho que agora chegou a hora.
Conheci M. aos doze anos, entre os jovens de um grupo religioso que eu ajudava a liderar. Ela era uma típica adolescente problema: carente, falastrona, indisciplinada, com uma curiosidade sexual que era pura encrenca. No começo, liderar atividades quando ela estava presente me gelava. Mas não demorou muito para eu me apaixonar por ela.
Logo eu descobri que aquela falastronice era totalmente sincera e que aquela agitação toda era uma carência sem tamanho. M. aprontava muito, mas não mentia. Falava demais, mas não fingia o que não sentia. Em pouco tempo, eu a adorei com a mesma simplicidade que ela me adorou. E ficamos juntas por muito tempo. Foi a primeira vez que tive a noção do que seria amor de mãe.
Ela morava numa casa com outros quatro irmãos adotivos, cada um com uma origem. Chegou nessa casa com um pouco mais de 2 anos, desnutrida. Todos temos uma visão muito idealizada da adoção, mas a verdade é as coisas naquela casa não eram exatamente um mar de rosas. A oficial de justiça que apreciava o poder de tirar a custódia de mães sem as mínimas condições de criar seus filhos, gostava de bebês, mas não exatamente de crianças. Até uns quatro aninhos, era só encantamento. Depois disso, os mais velhos começavam a tomar conta dos mais novos. Além disso, a diferença entre o tratamento dado ao filho legítimo e aos adotivos era muito gritante.
Adicionalmente, por ser uma pessoa muito carismática e de prestígio social, ela acabou atraindo uma grande hostilidade para M., pois vivia choramingando pelos inúmeros problemas que ela lhe trazia. Adultos chegavam a dizer para a menina que a detestavam, que ela não valia nada, que não prestava. Outro dos motivos que provocava esse tipo de reação era a sensualidade natural da menina, que atraía não apenas os meninos da sua idade, mas perturbava homens mais velhos, como descobrimos depois.
Conforme M. foi crescendo, mais a situação foi piorando. Ela era levada de psicólogo em psicólogo, mas quando começava a expor ao profissional a situação doméstica, a mãe adotiva procurava outro terapeuta. M. tinha uma curiosidade muito grande por sexo e por drogas, como toda adolescente. Principalmente as que não são criadas com limites. Isso foi gerando mais tensão. Ela faltava na aula para "aprontar" com os amigos, o que era do conhecimento do quase todo mundo, menos da "mãe" que fingia não ver. Até que ela começou a pegar pequenas quantias em casa.
A situação foi num crescendo e. aos dezessete anos e sem nenhuma formação profissional, sem parentes e sem ter para onde ir, M. foi expulsa de casa, com alguns reais e uma mala de roupas. Num primeiro momento, ela foi encaminhada por um amigo da família para a casa de uma jovem mãe, onde cuidava do filhinho de cinco anos.
O acordo inicial era de que ela teria casa, comida e um pequeno salário para os gastos pessoais. Mas o salário nunca veio. Isso foi gerando atritos. A gota d´água foi quando ela teve um atrito com um cobrador de ônibus e foi levada ao conselho tutelar com o menino. A autoridade advetiu a jovem mãe que a situação de M. era ilegal e ela foi expulsa novamente.
Eu não conseguiria descrever a dor que senti quando ela ligou para a minha casa para me contar que estava morando num hotelzinho fuleiro na zona de meretrício de Porto Alegre, já que não tinha outro lugar para ir. E claro, vendendo seu corpo. Na época eu estava desempregada, meu marido cheio de dívidas e morávamos (ainda moramos) num apertamentinho de 22m2. Eu queria resgatá-la, mas não podia. Eu sentia muita culpa. E ainda não me livrei dela de todo.
As pessoas que a hostilizavam na infância fizeram questão de dizer para ela que sabiam que "ela só servia para isso." Um deles, que a conhecia desde criancinha, a obrigou a fazer programa para ela - ainda que ela estivesse com nojo - e ainda não pagou o valor total do serviço.
Enfim. No começo, eu ia visitá-la, por mais que a situação toda me doesse. Mas ela mudava muito de endereço e de telefone e eu acabei perdendo seu rastro.
Mais tarde fiquei sabendo que ficou alguns anos nessa vida e foi afundando cada vez mais na cocaína - estimulada sempre pelos clientes. O uso acabou levando M. a um estado de paranóia. Quando ela tentou se jogar da janela do sexto andar de um hotel, foi internada num hospital psiquiátrico.
Fui encontrá-la algum tempo depois internada numa clínica evangélica, limpa. Tinha sido diagnosticada sua bipolaridade, ela estava uns vinte e cinco quilos mais gorda, inchada e chapada de lítio e Haldol. Mas o mais duro para ela era não poder usar esmalte, batom, pintar os cabelos. Ser ela mesma.
Claro que ela não aguentou muito. Personalidade nunca faltou ali.
Acabou aprontando um auê e sendo expulsa da clínica. Ficou pulando de galho em galho, entre casas de amigos e contraparentes. Terminou na casa de uma família tão pobre que dormia numa esteira no chão, ouvindo os ratos e sem chuveiro elétrico. Ganhava cinco reais por faxina e usava tudo para comprar comida para ela e para a família.
Até que ela conheceu O. Como eu mesma um dia, ele se encantou pela meninice, pelo bom humor, pela fala rápida e engraçada. Vou resumir a história: estão casados e ela está grávida de oito meses. Moram numa casinha muito fofa na grande Porto Alegre, se amam e se cuidam muito. Ele se informou comigo sobre os problemas psicológicos que ela tem e cuida para que ela se trate.
Fui visitá-la no último domingo. Ela está muito, muito feliz. Ele também. E nós ficamos muito felizes por eles.
Por isso estou contando essa história. Porque ela me ensinou que qualquer situação na vida é superável. Para melhor.
Feliz 2010 para todos vocês!
4 comentários:
Puxa vida!
Obrigada por compartilhar essa história, amiga.
Mais legal ainda é saber que isso aconteceu.
Vc deveria pegar autorização com essa moça e escrever um livro sobre a vida dela.
Bela história!!! Adorei!
Querida
Que este ano que se inicia seja regido por muita paz, que o amor reine no coração de todos e que você realize seus desejos.
Que 2010 seja um sucesso!
Feliz Ano Novo!!!! \o/ \o/
Beijos :)
Parabéns! Muito inspirador para sabermos que a vida pode dar voltas, mas sempre há final feliz.
A roda da vida é fantástica, nem sempre podemos ver um final bom ainda por aqui, que bom que o dessa moça foi assim!
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