sábado, março 24, 2007

Sob a tempestade

Debaixo da chuva pesada de vento forte, eles corriam. Ela e o cavalo. Com seu vestidinho cor-de-rosa já todo encharcado, ela parecia pequena demais sobre o animal negro. Cavalgava em pelo, inclinada para frente, agarrada ao pescoço do cavalo. O corpo dele era seu único calor, seu único destino, a única coisa certa naquela noite de pesadelo.
Quem os visse, na noite escura, podia até achar alguma poesia na cena. Para ela não havia poesia alguma, só desespero e nada.
Corria fugindo do padrasto. O padrasto. O homem dedos, o homem língua, o homem coisa dura na sua mãozinha, o homem desejos. Os desejos do homem a repugnavam, lhe davam nojo. Mas ele vinha sempre atrás dela. A mãe não sabia de nada, não acreditava em nada, não ouvia nada. A mãe nada.
E essa noite, que a mãe ficara tempo demais na casa do vizinho, ele viera. Com a fúria dos que sabem que terão tempo. Ela correu. Escapa não escapa escapa deu-lhe com o abajur na cabeça. Ele caiu. Ela não esperou pra ver se levantava.
Saiu, montou no cavalo, correu.
E ainda corre. Sem saber se conseguirá chegar longe o suficiente. Se bateu com força o suficiente. Ou se, mais provável, é só o destino sem destino, a captura, a violação, a vergonha, o nojo, o nada, o nada. Ela tem dor nas pernas. Mas por ela esse cavalo não parava nunca mais.