sábado, setembro 23, 2006

Não sou anjo nenhum


Foi a primeira frase que ela me disse. "Não sou anjo nenhum e jamais disse que era." Modo estranho de começar um depoimento. Depoimento, de resto, todo estranho. Por isso agora, expediente acabado, escrevo nesse quarto de hotel. Para tirar de dentro e dormir. Desintoxicar.
Não era um anjo, mas era verdade que demorou na vida para conhecer o pecado. Foi mais, mesmo, quando o conheceu. Antes, seus pecados eram a preguiça - para a qual logo não sobrou muito tempo, filha que era de uma família de pescadores. E um tiquinho de gula, quando a mãe fazia doce, que ela adorava. O resto não conhecia, não. Cresceu reta na vida de sol e trabalho, igreja aos domingos, aprender a rezar para que o pai e os irmãos sempre voltassem do mar. Mas um dia ele chegou.
Luxúria, diria eu, ela usou "desejo". E cobiça. Quando aquele homem de pele clara e cabelos louros chegou, ela só tinha quinze anos, mas o quis de imediato. Ela nem sabia bem pra que, foi descobrir direito depois, mas queria. Queria a voz dele, aquele sotaque que raspava nos erres e que amolecia suas pernas, queria os braços fortes e mais tarde, quando descobriu que os olhos dele eram verde-água e não escuros como o de toda gente, quis aqueles olhos para ela também. E desde o dia que o viu, só o queria mais ver. Mais e mais. Entrou numa consumição.
Até a mãe a deixou um dia sem trabalhar, a encontrou com febre. Mas a febre só fazia aumentar... À tarde disse que estava bem e pediu para ir à venda. Foi nesse dia que ela se fez notar - daí, para ele cair na sedução fácil da carne virgem que se oferecia, foi um pulo, questão de dias. Poucos dias.
Ela já tinha ouvido falar que ele tinha uma mulher, branca como ele. Mas não importava, nada importava. Era atrás dela que ele ia - e atrás das dunas de areia branca ela descobriu para que mais o queria. Descobriu que também queria o peso daquele homem entre suas coxas, que queria seu hálito e o roçar daquele cabelo fino no seu rosto. Tudo isso é comum na vida de todo mundo, mas o olho brilhante daquela menina dizendo "eu descobri o céu...", sem vergonha nenhuma, numa sala só de homens, é coisa que mexe com a gente.
A família, por sorte, era muito quieta, não gostavam de fofocas e a mãe não ia muito prosear na vila. Mas a mulher do gringo, não. Começou a assuntar, a querer saber, a seguir o marido. E, para desespero dela, o homem começou a se apavorar. Não aparecia a encontro marcado, propunha lugares cada vez mais ermos. "Por que não larga dela de uma vez e fica comigo? Porque tem tanto medo? O que te prende a essa mulher?" Ela perguntava, cada vez mais irada e ele ria nervoso, dizia que eram coisas que ela não entenderia... Até que chegou o dia que ele não apareceu mais e mandou para ela que eles deviam esperar a mulher se acalmar. "Até quando?" Ele nunca respondeu.
Ela chorou, chorou, chorou uma noite inteira no quintal, alegando para a mãe que estava com falta de ar e ia sair do quarto. A mãe estava tão cansada que nem perguntou. Procurava o gringo por tudo, mas ele desviava dela.
Até aquela tarde. Ela chegou em casa da venda e estava tudo parado, estranho. Ela sentiu um arrepio. Quando entrou, na sala de chão batido, a gringa olhou para ela com ar de vencedora. Levantou e saiu, nem se despediu. O rosto da mãe estava lavado de vergonha. Aquele dia ela apanhou da mãe, até o pai chegar. Então apanhou do pai, até ele se cansar. Eles não falavam, não xingavam, só batiam. Gente quieta. Dava para ver que ela falava sem ódio deles. Deles.
Ela disse que foi nessa noite que ela aprendeu a odiar a gringa, de quem antes só tinha raiva. Um ódio feio, grande, descomunal. Daí em diante ela perdeu a expressão e voltou a ter a cara que tinha no começo do depoimento.
Daquele dia em dia ficou meio que presa na casa dos pais, sem muita chance de saída. Na cidade inteira chamavam ela de "a puta do gringo" - faziam em voz alta o que antes cochichavam. Para a família era vergonha grande, era filha de nunca mais casar. Mas ouviu um moleque comentar com um irmão que os gringos iam embora. Foi demais para ela. Passou aquela noite inteirinha pensando, olhando pro teto. Sem uma lágrima. Fugiu enquanto a mãe lavava roupa, com a faca de abrir peixe. Se esgueirando pela cidade, entrou na casa dos gringos pela janela e estripou a mulher branca como se fizesse isso de pequena.
Nos descreveu o modo como a derrubou com um golpe de licoreira e cada um dos doze golpes como se fosse ontem. Sem emoção, sem nojo, sem alegria.
Quando alguém disse, irônico, que ela não parecia se arrepender, ela não demonstrou vergonha. "Só lamento ter terminado de me separar do gringo para sempre. Mas ela tinha de morrer. Mas quando me trouxeram pra cá, sabia que estava perdida pra sempre. Daqui ninguém sai. Nem ninguém me visita, nem ele, nem mesmo minha mãe. Estou aqui há quanto? Três anos? Mas matava, matava ela de novo. E ainda mais devagar. Maldita."
Quando ela disse maldita, seu olho quase brilhou e me deu medo. Não, ela não era nem um anjo. Mas naquela determinação metálica, tinha algo nela que ia além do humano.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Samara quer saber

O que vocês estão achando do blog? Falta algo que esperavam?
E a história de W.? Estão gostando? Cria expectativa? Banal demais?
E os demais contos, o que acham?
De qual estilo gostam mais mais: os "contos" ou a história?
Sobre qual assunto gostariam que eu escrevesse?

Respondam nos comentários, ok? Sei que vocês são poucos ainda, mas os quero bem atendidos.

A Gerência agradece a atenção. ^_^

(P.S.: Não quero falsos elogios e falo sério. Ego de escritor é frágil mas nem tanto. Quero melhorar e, para isso, críticas são mais que bem vindas, mais que rasgação de seda. Expressem-se, sim?)

segunda-feira, setembro 18, 2006

De alguém que perdeu o próprio mundo

Mensagem encontrada numa garrafa, na orla do mar.

"Caro amigo desconhecido,

Sei que me perdi do meu navio e dos meus, mas não me lembro quando. Fui encontrado numa praia muito bonita, mas também não saberei escrever seu nome. Sim, essa carta é inútil. Não haverá resgate, nem mesmo há porquê. As pessoas gentis que me acolheram me tratam muito bem e dizem que eu sempre estive aqui, que sempre nos conhecemos. Eu sorrio e finjo acreditar, mas não me lembro deles nem um pouco. Eu os trato com gentileza, mas não sinto nada.
Na verdade, esse é o maior problema sobre minha condição. Não sinto nada em tempo algum, por motivo algum. Nada me extasia, nada me irrita, nada me fere também. Na verdade, mesmo essas palavras me dizem pouco ou nada.
Tem duas coisas que eles dizem que fazem comichar algo aqui no meu peito, mas a verdade é que, mesmo eles explicando, as palavras não fazem sentido na minha cabeça. Uma é perda, que me dá a comichão e me deixa com olhos perdidos no mar - nem eu sei bem porquê. A outra é amor, que chega a alterar minha respiração. Quase sinto uma ardência, sinto que sei o que é, mas não consigo ir além.
Realmente, não sei porque escrevo. Não procuro resgate, não sei qual é minha terra de retorno. Acho que procuro alguém tão perdido quanto eu.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Batei e trancar-se-vos-á

Para sempre
Se manterá fechada e imóvel
Ainda que você bata por noites e noites
Até você manche tudo de sangue vivo, expondo em carne viva o nó dos dedos
E deixando pedaços das unhas entranhadas na madeira
E mesmo que tente fazer entrar pelas frestas os gritos de dor
E passar todo seu amor imenso fracionado pelo buraco da fechadura
A porta nunca, nunca se abrirá.

Porque esse mundo é árido e você está sozinha
E em muitos cantos não sobra espaço para o amor cristão, nem para o perdão
Porque existe recantos para onde os anjos não ousam olhar.

E neles eu habito...

quarta-feira, setembro 06, 2006

Zutto



Ela raspava, raspava, mas de nada adiantava. Continuava a lhe crescer das axilas, do rego entre os seios, do meio das nádegas, do sexo e tomava tudo. Não, não eram pêlos. Estes, ela não tinha nenhum. Era musgo. Um musgo verde e macio que não parava de tomar conta do corpo dela. Já tinha brincado de deixar só um pouquinho sobre os mamilos ou no lugar dos pelos pubianos. Mas a verdade é que não o dominava.
O musgo crescia a partir dos lugares sombreados e ia tomando o corpo todo. Cada pedacinho dela. Por isso aquela agonia, aquele medo.
Ela se "depilava" todos os dias. Mas sabia que o musgo continuaria a crescer.
Seu maior medo era ficar inválida e aquela massa verde tomar conta de todo o corpo dela, do rosto. De mudar a forma de seu corpo e a deixar muito parecida com as rochas recobertas de musgo que via no parque. (Seriam mesmo rochas?)

sábado, setembro 02, 2006

Da transparência


Ela lavava as janelas dele todo santo dia, menos aos domingos. No início, apenas achavam divertido que ela lavasse com tanto esmero as janelas perante as quais o homem cego se postava muitas horas, todos os dias. Alguns a achavam apenas extremamente honesta, porque ela tinha tanto o que fazer, mas deixava as janelas um brinco. Obviamente pensavam que, se ela relaxasse um pouco, não faria a menor diferença.
Mais confusos, muito mais confusos eles ficaram quando alguém descobriu que ele não pagava para que ela limpasse as janelas. Era algo que ela fazia espontaneamente quando saía da casa ao lado, que faxinava por dinheiro. No início, foi só espanto. Depois, ela recebeu mais propostas para trabalhinhos gratuitos e recusou a todos. “Mas, por que não? Nos conhecemos há tanto tempo! Para o cego você faz de graça! O que custa me fazer um favor?” Chegou a perder um ou outro trabalho por causa disso. Resistiu, entretanto.
Quando eles se casaram, no final daquele ano, as piadas e risadas não foram poucas. De certo modo, todos ficaram felizes, não apenas por terem do que rir, mas pela certeza de que finalmente tinham entendido as coisas.
Mas, querem saber um segredo? Fora aqueles dois, felizes na casinha que agora era deles, ninguém jamais entendeu nada.