quarta-feira, maio 30, 2007

Distância

Não conseguia chegar em casa, algo dentro de si impedia o final do trajeto. Pegava o ônibus errado de propósito, aí ia descer onde dava para pegar o ônibus para casa e não descia, deixava para ir mais adiante, até que num deles desceu no centro da cidade e agora ficava fácil. Era só atravessar mais uns metros de ruas em direção ao rio, que ela chegaria no ponto final do ônibus que passava ao lado da sua casa.
Eram alguns metros, mas viraram vários, ela se perdeu inúmeras vezes no que seria uma reta e andou, andou, andou muito além do que achava que suas pernas podiam suportar. Mas havia uma lógica nessa matemática esquisita de metros e minutos.
Por dentro, ela fazia uma força imensa para manter distante o que se queria próximo, para afastar lembranças antigas que se mantinham com o frescor do ontem, para cessar o diálogo interno com alguém que não existia mais. Essa luta interna foi o que a manteve distante inúmeros passos e um longo tempo e que a fez chegar exausta, enfim, à casa vazia.

sábado, maio 19, 2007

Do Inferno

"Em verdade vos digo, meus irmãos..." Fez uma pausa dramática. O que ia dizer era demais até para ele, orador experimentado.
"Que eu tenho muito medo de, quando morrer, ir para o inferno. E eu posso dizer isso com mais convicção do que muitos, meus irmãos. Porque eu, eu conheço o inferno. Eu estive lá."
As palmas choveram. Muitos porque era hora de bater palmas. Outros por conveniência. Outros ainda porque admiravam sua eloquência ou porque estavam profundamente emocionados.
Mas o que nenhum deles sabia que o ele tinha dito, dessa vez, era a mais pura expressão da verdade.

quinta-feira, maio 17, 2007

Dragão

Essa doeu, viu? Dessa vez pegou de jeito. O que é estranho porque nos últimos tempos nada passava por minha pele, só me fazia cócegas e eu ria de toda a situação. Resisti aos golpes da tua raiva, às gotas corrosivas do teu desamor, às farpas de desatenção. Todo esse universo de negação que criastes para se defender de mim. E eu me tornei pele grossa e escamas, para me defender de ti.
Mas essa doeu. Pegou de mau jeito, entre uma escama e outra ou embaixo da asa, sei lá. Mas essa pequena agulha de não me arrancou um pedaço e me tirou sangue. Ai!
Fico pensando porque tanta defesa, tanta agressividade. Talvez, quando ainda fazíamos amor madrugada a dentro como se nunca fosse amanhecer, eu tenha te ferido com uma das minhas escamas que já nascia. Ou tenha te chamuscado soltando fogo enquanto ofegava de prazer.
Eu queria ser uma cantora itinerante para espalhar por aí a dor e o amor que ficaram dentro. Como não sou, eles vão murchando e ficando verdes dentro da minha caverna. A vida vai se decompondo em mofo e escuridão.
Por isso, sabe, sangrou um pouco, mas é bom. Esse sangue ainda me devolve minha metade humana.

quarta-feira, maio 09, 2007

A mulher que tinha lembranças demais

Esfriou. E com o frio mudaram os cheiros, cheiros de inverno, de outono. Ela começou a se confundir, porque o aroma da nova estação trazia uma série de emoções do ano anterior e ela já não sabia mais o que sentir.
O cheiro do café lembrava certo diálogo que ela preferia esquecer, o do seu casaco lembrava quando ela o encharcou com as próprias lágrimas, a calefação do bar lhe dava certa nostalgia. Os aromas do parque no frio lembravam as conversas com uma amiga e as várias tardes em que vagara sem destino, procurando por algo que sabia não estar lá.
Todas essas lembranças causavam emoções que não cabiam mais no novo cotidiano que construíra durante a primavera e o longo verão. E ela se enrolava, tentando descobrir como desligar o botão da memória.