quarta-feira, outubro 03, 2007

Transformação

E de repente era o amor, borbulhando entre seus dedos. E depois do fim e do mal, depois de morrer no inferno mais de oitenta e oito vezes, havia um horizonte enorme e vida nele. No final do túnel, no final do caminho, no final do sofrimento. Havia um horizonte puro e virgem, havia uma série de novas conquistas e novos prazeres - era o recomeço de tudo.
Era mais, muito mais, que sobreviver.

domingo, setembro 23, 2007

O mal

Ela achou a foto dele quase no susto. Era uma imagem nova, que ela não conhecia, tirada assim, meio de lado. E o que ela viu lhe gelou a espinha e lhe causou náusea. Porque ela sempre vira lhe escorrer grossa do olhar, a sensualidade. A matreirice. Sempre tivera a expressão receptiva e sedutora. Mas o que ela via ali era hostil.
O sorriso não era aberto. E o olhar destilava o mal. Ela teve medo e a impressão de que, depois que se desvencilhara dela, ele se entregara inteiro ao pior da sua verdadeira natureza.

terça-feira, setembro 04, 2007

Gafe

Acho que cometi uma indelicadeza. Fui indicada no blog da Roberta e esqueci de indicar.
Meus indicados são:

Yalla! (é, de novo, porque acho o blog um show)
Learning from Art
Muccapazza

quarta-feira, agosto 15, 2007

A outra (tema ditado por Lord Léo)

Precisava aceitar e acolher a outra de mim. A pequena. A assustada. A ferida. A mulher de um milhão de cicatrizes. Mas não o fazia.
Virava-lhe as costas e lhe oferecia o mais profundo do meu desprezo. Porque era ela quem havia me traído. Ela acreditara. Ela se entregara. Era ela a culpada de minhas marcas e de meu sofrimento. Era inaceitável. Pertenciam-lhe todo o erro e toda a culpa.
Assim nos remoemos, cada uma no seu canto e com seus motivos. Quem tinha feito o que. Quem poderia ter feito o que. Quem poderia ter evitado o que. Quem tinha, afinal, CULPA de cada coisa minúscula que levou ao desastre final.
Assim foi, por muito tempo, até que meu Mestre chegou e me perguntou: “Por que não a acolhes?” Então eu desfiei, feliz, meu longo rosário de reclamações sobre ela. Ele ouviu, paciente, e então me disse: “Não é nada disso, você não a acolhe por que tem medo.” Corei. “Mas o seu medo é parte de você e não pode fugir de si mesma para sempre.
Vendo meu embaraço, ele me consolou: “Por ser parte de você, conhece muito bem o seu medo. Então, na verdade, não há nada o que temer.”
Então eu a chamei e a acolhi num grande abraço cheio de lágrimas. Ficamos abraçadas por muito tempo, sendo, então ela se encolheu e passou a ser parte de mim. Somos uma agora. E sendo uma com ela, pude ver com toda nitidez de contornos a natureza do meu medo. É simples. Eu te amo ainda, muito e verdeiramente.

quarta-feira, junho 13, 2007

Casulo

Eu vivo dentro de um casulo transparente. Grosso, bem grosso. E grande pra mim. Aqui dentro eu respiro dentro de um líquido e nada pode me atingir. Aqui estando, meus inimigos nada podem contra mim.
Por vezes, me assusto. Eles arremetem com suas lanças e suas armas - eu sinto o impacto, mas não sou atingido. A camada transparente é muito grossa, nada passa, nem lâmina, nem bala. Aqui o veneno mais pernicioso e sutil não transpassa.
Aqui é meu refúgio e meu sossego. É quente, confortável, seguro. Ninguém em sã consciência ia querer sair daqui. E pouco me importa os que dizem que dentro desse casulo eu vivo fora da vida.

terça-feira, junho 05, 2007

Fizeram para mim

Uma amiga muito querida, a Karenina do Pé de Lobeira, fez este poema para mim e eu pedi autorização para publicar. Uma Polaroid da minha alma.

Samara

Somatório
E nada santa
Sangra e não estanca
E ninguém vê

Há que ser muito pra perceber
O que parece nuvem branca

Porque a tempestade mira você
E se você não se manca
Nada vai entender

E mesmo se entender
De nada adianta

Nem se pergunte por que...
Ela sangra e não estanca

quarta-feira, maio 30, 2007

Distância

Não conseguia chegar em casa, algo dentro de si impedia o final do trajeto. Pegava o ônibus errado de propósito, aí ia descer onde dava para pegar o ônibus para casa e não descia, deixava para ir mais adiante, até que num deles desceu no centro da cidade e agora ficava fácil. Era só atravessar mais uns metros de ruas em direção ao rio, que ela chegaria no ponto final do ônibus que passava ao lado da sua casa.
Eram alguns metros, mas viraram vários, ela se perdeu inúmeras vezes no que seria uma reta e andou, andou, andou muito além do que achava que suas pernas podiam suportar. Mas havia uma lógica nessa matemática esquisita de metros e minutos.
Por dentro, ela fazia uma força imensa para manter distante o que se queria próximo, para afastar lembranças antigas que se mantinham com o frescor do ontem, para cessar o diálogo interno com alguém que não existia mais. Essa luta interna foi o que a manteve distante inúmeros passos e um longo tempo e que a fez chegar exausta, enfim, à casa vazia.

sábado, maio 19, 2007

Do Inferno

"Em verdade vos digo, meus irmãos..." Fez uma pausa dramática. O que ia dizer era demais até para ele, orador experimentado.
"Que eu tenho muito medo de, quando morrer, ir para o inferno. E eu posso dizer isso com mais convicção do que muitos, meus irmãos. Porque eu, eu conheço o inferno. Eu estive lá."
As palmas choveram. Muitos porque era hora de bater palmas. Outros por conveniência. Outros ainda porque admiravam sua eloquência ou porque estavam profundamente emocionados.
Mas o que nenhum deles sabia que o ele tinha dito, dessa vez, era a mais pura expressão da verdade.

quinta-feira, maio 17, 2007

Dragão

Essa doeu, viu? Dessa vez pegou de jeito. O que é estranho porque nos últimos tempos nada passava por minha pele, só me fazia cócegas e eu ria de toda a situação. Resisti aos golpes da tua raiva, às gotas corrosivas do teu desamor, às farpas de desatenção. Todo esse universo de negação que criastes para se defender de mim. E eu me tornei pele grossa e escamas, para me defender de ti.
Mas essa doeu. Pegou de mau jeito, entre uma escama e outra ou embaixo da asa, sei lá. Mas essa pequena agulha de não me arrancou um pedaço e me tirou sangue. Ai!
Fico pensando porque tanta defesa, tanta agressividade. Talvez, quando ainda fazíamos amor madrugada a dentro como se nunca fosse amanhecer, eu tenha te ferido com uma das minhas escamas que já nascia. Ou tenha te chamuscado soltando fogo enquanto ofegava de prazer.
Eu queria ser uma cantora itinerante para espalhar por aí a dor e o amor que ficaram dentro. Como não sou, eles vão murchando e ficando verdes dentro da minha caverna. A vida vai se decompondo em mofo e escuridão.
Por isso, sabe, sangrou um pouco, mas é bom. Esse sangue ainda me devolve minha metade humana.

quarta-feira, maio 09, 2007

A mulher que tinha lembranças demais

Esfriou. E com o frio mudaram os cheiros, cheiros de inverno, de outono. Ela começou a se confundir, porque o aroma da nova estação trazia uma série de emoções do ano anterior e ela já não sabia mais o que sentir.
O cheiro do café lembrava certo diálogo que ela preferia esquecer, o do seu casaco lembrava quando ela o encharcou com as próprias lágrimas, a calefação do bar lhe dava certa nostalgia. Os aromas do parque no frio lembravam as conversas com uma amiga e as várias tardes em que vagara sem destino, procurando por algo que sabia não estar lá.
Todas essas lembranças causavam emoções que não cabiam mais no novo cotidiano que construíra durante a primavera e o longo verão. E ela se enrolava, tentando descobrir como desligar o botão da memória.

sexta-feira, abril 13, 2007

Ela não dança mais

Ela não dança mais. Ela parou n o t e m p o.
Ela não mais rodopia, não mais tremula, não mais ondula, não mais faz do seu corpo a expressão da sua alma.
Não mais os véus transparentes, não mais.
Não mais o farfalhar frenético das saias nos giros.
Não mais sua pele branca se dobrando e desdobrando ao som dos derbaques.
Não mais os dedos ágeis nos snujs, nem o som simpático do daff.
Ela não dança mais. Ela foi paralisada.
Descobriu-se imóvel sob o peso emocional de milhares de canções, que ela tanto amava. Que a faziam dançar chorando. E hoje assistem, suspensas no ar como as canções eternas sabem ficar, as lágrimas que rolam, único elemento em movimento num corpo estático.

sábado, março 24, 2007

Sob a tempestade

Debaixo da chuva pesada de vento forte, eles corriam. Ela e o cavalo. Com seu vestidinho cor-de-rosa já todo encharcado, ela parecia pequena demais sobre o animal negro. Cavalgava em pelo, inclinada para frente, agarrada ao pescoço do cavalo. O corpo dele era seu único calor, seu único destino, a única coisa certa naquela noite de pesadelo.
Quem os visse, na noite escura, podia até achar alguma poesia na cena. Para ela não havia poesia alguma, só desespero e nada.
Corria fugindo do padrasto. O padrasto. O homem dedos, o homem língua, o homem coisa dura na sua mãozinha, o homem desejos. Os desejos do homem a repugnavam, lhe davam nojo. Mas ele vinha sempre atrás dela. A mãe não sabia de nada, não acreditava em nada, não ouvia nada. A mãe nada.
E essa noite, que a mãe ficara tempo demais na casa do vizinho, ele viera. Com a fúria dos que sabem que terão tempo. Ela correu. Escapa não escapa escapa deu-lhe com o abajur na cabeça. Ele caiu. Ela não esperou pra ver se levantava.
Saiu, montou no cavalo, correu.
E ainda corre. Sem saber se conseguirá chegar longe o suficiente. Se bateu com força o suficiente. Ou se, mais provável, é só o destino sem destino, a captura, a violação, a vergonha, o nojo, o nada, o nada. Ela tem dor nas pernas. Mas por ela esse cavalo não parava nunca mais.

domingo, fevereiro 25, 2007

Daquilo que cremos ser cumplicidade

Algo em torno das duas da manhã. As batidas na porta são muito fracas, mas ele estava atento, esperando, ouviu logo as primeiras. Abre.
"Rato molhado" foi a primeira expressão que ocorreu a ele quando a viu enrolada no casaco grande demais. Chovia torrencialmente lá fora e ela certamente não se incomodara com guarda-chuvas. Não estava encharcada, mas toda uma umidade exalava do seu corpo.
- O que foi dessa vez, Lê?
Ela não respondeu. Deu um sorriso sem graça e entrou. Deu um beijo no rosto dele. Nesse momento, ele esfregou seu ombro gelado. E ela desabou. Caiu chorando no colo dele. Era um abraço caloroso e apertado, mas não tinha nada de sexual. A própria palavra sexual teria conotação de incesto numa situação daquelas. Muitas vezes precisamos nos despir da própria libido para ficarmos de alma nua.
Sentaram no imenso sofá cor de creme. Ela se enrodilhou no colo dele.
- Você não toma jeito mesmo, né, Leda. Quando é que você vai parar de sofrer?
Ela riu derramando lágrimas e começou sua narrativa. Ele era todo ouvidos e ela não tinha a menor dúvida disso.

- E agora, Bob, como é que eu vou me reconstruir dessa vez? Como ainda vou ter força para montar tudo de novo? Acho que estou começando a ficar velha demais pra isso.
- Deixa de ser boba. Claro que vai conseguir. A gente sempre conseguiu, não é?
O "a gente" foi o suficiente para fazer com que ela risse sem lágrimas, pela primeira vez.

domingo, fevereiro 18, 2007

Pássaros

O outrora brilhante pássaro verde da Ingenuidade está preso numa gaiola imunda, em um lugar miserável e sombrio entre este mundo e o outro. Aquele que se alimentava dos pomos frescos da Juventude hoje vive de insetos rastejantes e dejetos de ratos e mais parece um papagaio feio, velho e doente.
Numa gaiola bem próxima, o pássaro azul da Confiança, agora praticamente negro. Fede e está relegado à mesma podridão de seu antigo parceiro. Ambos foram traídos de tantas tantas formas, que passaram a desconfiar um do outro. Viram na Terra toda a sordidez, toda a maldadade, toda a canalhice, toda a irresponsabilidade, toda forma de trair a Confiança e desonrar a Ingenuidade.
Hoje, cada um deles desconfia, discretamente, que foi traído por causa do outro -- se não fosse tanta a ingenuidade, a Confiança não cairia, se não fosse tanta a confiança, a Ingenuidade não seria apanhada. Ambos tem razão e ambos se equivocam.
Um pouco mais afastada fica a gaiola do pássaro do Perdão, que um dia ostentou um branco deslumbrante. Esse é mais quieto e não faz questão de aparecer. Tem vergonha do modo como foi capturado. Oferecendo o perdão a todos e por tudo, oferecendo o perdão até para o que não podia ser perdoado, um dia, se viu na situação de necessitar do perdão alheio. Contou com ele cegamente, era algo que não fizera por mal e não tivera maiores conseqüências. Mas o perdão lhe foi negado e a ave caiu. Tem uma vergonha profunda, acha que a culpa é dela por não ter perdoado ainda o suficiente. Dizer-lhe que o erro não foi seu não adiantará nada.
Hoje, o que elas tem em comum, apenas, é a certeza de que um certo pássaro rubro cairá. Tem quem o deseje, tem quem o lamente. Mas cairá.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Queria que vocês pudessem ver meu coração

E ver como o trago lanhado, pisado, cheio de cortes e hematomas. Queria que vocês pudessem ver meu coração e ver todas as marcas de sangue, as queimaduras com ponta de cigarro, as feridas purulentas e as algemas sem chave que trago comigo.
Porque com o coração alheio ninguém se importa, o coração alheio é lata de lixo, o coração alheio é cachorro sem dono. O coração alheio se pode retalhar para salvaguadar o próprio coração. O coração alheio não se ouve, não se acalenta, não se salva. O coração alheio está no peito do outro e cada um com seus problemas.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Dois pra lá, dois pra cá

"O que mesmo eu estou fazendo aqui?" Perguntou-se já deslizando na pista, ao som de antigos boleros. Ela começara a fazer dança de salão por insistência das amigas da academia. E até achara legal. Aí, o pessoal a arrastou para esse baile - um lugar onde se podia realmente dançar. Mas acontece que aquilo parecia um baile da terceira idade, todo mundo parecia muito, muito mais velho do que ela. "Essa definitivamente não é a minha praia." Foi quando aquele senhor a tirou para dançar e ela aceitou pela insistência das amigas. Só esperava que ele não viesse com gracinhas.
Reloj detén tu camino porque mi vida se apaga...
Mas ele foi muito, muito respeitoso. Dançava com a distância correta e nem mesmo ficou puxando papo. Ele dançava bem. Ela foi se deixando envolver pelo ritmo. Quando se deu conta, estava muito, muito tranqüila, com uma grande sensação de bem estar.
Então percebeu que essa sensação agradável tinha uma fonte: o perfume dele. Não apenas o que ele estava usando, mas o que exalava da pele morna sob a camisa de seda. Sem que se desse conta, aninhou a cabeça no peito dele, que era bem mais alto. Por um desses mistérios da vida, ela nunca se lembrou com exatidão do momento em que o fez, ele jamais se esqueceu.
Ojos negros piel canela, que me llegan a desesperar...
O fato é que quando se deu conta, estava encostada no peito do homem. E começou a observá-lo melhor. É verdade que ele era um coroa. Devia ter de dez a quinze anos a mais que ela. Mas ainda era um homem muito bonito. O rosto anguloso, a pele ocre que brilhava e os fartos cabelos negros, salpicados de fios prateados. Era tudo muito bonito e passava a idéia de grande dignidade.
E jeito que dançava. Como a conduzia com firmeza, como se ela fosse leve, muito leve, parecia uma pluma. Um homem que sabia como e aonde queria ir. Chegou a pensar que seria bom ter um guia desses nas noites da sua vida.
...que le dio luz a mi vida apagándola después ...
Instantes depois, começou uma seleção de twist. A dança acabou. E ela já estava apaixonada.

terça-feira, janeiro 30, 2007

O Vale dos Pulsares Amputados

Em um lugar distante em outra dimensão, onde a luz do sol jamais chega, vivem criaturas humanóides que gemem e sofrem. Digo humanóides porque parecem humanas e não são feitas de matéria, mas de energia. E porque podem ter as formas um pouquinho alteradas por sua atividade - alguns têm os olhos desmesuradamente caídos de tanto chorar, outros têm os braços num verdadeiro xadrez de tantos arranhões, outros, uma reentrância na testa de tanto batê-la contra objetos.
Eles vivem sob a terra, em túmulos, porque são os filhos de nossos amores sepultados ainda vivos. Cada amor abortado pela falta de coragem cria uma criatura no vale. São os pulsares amputados, as paixões contidas, um monte de vida e de energia estancada a ferro e fogo.
Os seres no vale são crias da nossa energia, uma parte de nós que se perdeu para a dor. Por isso cada vez que "superamos", que um amor desses "acaba" fica no nosso peito um eco, um vazio - porque parte de nós ainda sofre, por lá.
E não pense que por não serem humanos eles sofrem menos. Padecem mais porque agüentam mais. Doem. Rasgam. Gemem. Gritam. Urram. Babam. Choram. Lamentam. Clamam. Arranham. Caem. Exasperam. Sangram.

Agora que você sabe, me responda: quantos amores sua covardia mandou para o vale dos pulsares amputados?

domingo, janeiro 28, 2007

Ela e o vento

Ela se alimentava do vento. Desde pequena tinha o costume de se postar em pé no alto do morro e deixar o vento passar por ela, braços e pernas abertos. Fazia isso praticamente todos os dias e nunca passou pela cabeça de ninguém proibir, já que o hábito não parecia trazer mal algum.
Quando ela começou a ficar mocinha, entretanto, o pai encasquetou. Achou que ela ia se encontrar com algum rapaz, com a desculpa de ir "sentir o vento". Um dia proibiu, ela ficou uma semana sem sair. Mas ficou de tal maneira irritada, um tal de não comer e não beber que o pai achou melhor liberar. Ela podia ir, mas a mãe tinha que ir junto - não demorou muito para eles verem que não havia rapaz algum, era só a menina no vento, descabelada, com cara de criança feliz.
Ela não tinha muitas amigas e a verdade é que muitas das meninas da idade dela a achavam muito esquisita com essa mania de vento, precupadas que eram em manter penteados e chapinhas. Mesmo sem amigas, ela não era mais infeliz do que as outras garotas - tinha seus pensamentos, sua vidinha, seu vento. E ventava muito naquela cidade, graças a Deus.
Conheceu um moço na quermesse e mais tarde ele se tornou seu marido. Desde o namoro ficou claro para ele que ela seria a mais dócil das mulheres, contanto que ele não implicasse com as suas manias. Ele não só não implicou como foi o primeiro a prestar atenção. Que ela parecia enfraquecida quando não podia ir sentir o vento. Que quando ventava bem ela ficava mais feliz. Que nos dias sem vento ela ficava numa irritação tamanha que ele andava na ponta dos pés. E nos dias de grande ventania, de tempestade, ela ficava numa euforia que o amor dos dois à noite fazia os móveis tremerem.
Quando ela ficou grávida, ia pegar o vento de barriga de fora. E quando a criança nasceu, ia constantemente pegar vento com ela no colo. Todo mundo sempre dizia que assim o bebê viveria resfriado, mas ela afirmava que era o contrário. Quanto mais ele tomava vento, mais forte ficava. E se estivesse doente, se curava no vento. E se não curasse, a mãe voltava para casa sabendo exatamente o que fazer para ele ficar são.
O filho cresceu forte e se tornou um homem bom. Ninguém tinha coragem de ir contra as manias da mãe, mas ele ficava chateado porque sabia que, pelas costas, diziam que ela era uma bruxa. Quanto mais ela envelhecia, maior era a chacota com a velhinha que ia se estender todos os dias ao vento. Ele lamentava. Não sabia o que a mãe era, mas, como o pai, observava. Sabia que tudo quanto ela fazia, funcionava. E quando não estava bem, ia pegar vento também - mas de madrugada, para que ninguém o visse.
E no dia em que ela morreu, ninguém acreditou no que houve, porque só o filho viu. Ela estava sentindo seu vento, exposta, quando passou mal. Encolheu-se no chão. O filho viu de longe e se preocupou, foi ver o que era. Antes que ele conseguisse chegar perto, ela começou a despetalar, como uma flor. E as pétalas do que ela fora seguiram com o vento, seu companheiro.