domingo, fevereiro 25, 2007

Daquilo que cremos ser cumplicidade

Algo em torno das duas da manhã. As batidas na porta são muito fracas, mas ele estava atento, esperando, ouviu logo as primeiras. Abre.
"Rato molhado" foi a primeira expressão que ocorreu a ele quando a viu enrolada no casaco grande demais. Chovia torrencialmente lá fora e ela certamente não se incomodara com guarda-chuvas. Não estava encharcada, mas toda uma umidade exalava do seu corpo.
- O que foi dessa vez, Lê?
Ela não respondeu. Deu um sorriso sem graça e entrou. Deu um beijo no rosto dele. Nesse momento, ele esfregou seu ombro gelado. E ela desabou. Caiu chorando no colo dele. Era um abraço caloroso e apertado, mas não tinha nada de sexual. A própria palavra sexual teria conotação de incesto numa situação daquelas. Muitas vezes precisamos nos despir da própria libido para ficarmos de alma nua.
Sentaram no imenso sofá cor de creme. Ela se enrodilhou no colo dele.
- Você não toma jeito mesmo, né, Leda. Quando é que você vai parar de sofrer?
Ela riu derramando lágrimas e começou sua narrativa. Ele era todo ouvidos e ela não tinha a menor dúvida disso.

- E agora, Bob, como é que eu vou me reconstruir dessa vez? Como ainda vou ter força para montar tudo de novo? Acho que estou começando a ficar velha demais pra isso.
- Deixa de ser boba. Claro que vai conseguir. A gente sempre conseguiu, não é?
O "a gente" foi o suficiente para fazer com que ela risse sem lágrimas, pela primeira vez.

domingo, fevereiro 18, 2007

Pássaros

O outrora brilhante pássaro verde da Ingenuidade está preso numa gaiola imunda, em um lugar miserável e sombrio entre este mundo e o outro. Aquele que se alimentava dos pomos frescos da Juventude hoje vive de insetos rastejantes e dejetos de ratos e mais parece um papagaio feio, velho e doente.
Numa gaiola bem próxima, o pássaro azul da Confiança, agora praticamente negro. Fede e está relegado à mesma podridão de seu antigo parceiro. Ambos foram traídos de tantas tantas formas, que passaram a desconfiar um do outro. Viram na Terra toda a sordidez, toda a maldadade, toda a canalhice, toda a irresponsabilidade, toda forma de trair a Confiança e desonrar a Ingenuidade.
Hoje, cada um deles desconfia, discretamente, que foi traído por causa do outro -- se não fosse tanta a ingenuidade, a Confiança não cairia, se não fosse tanta a confiança, a Ingenuidade não seria apanhada. Ambos tem razão e ambos se equivocam.
Um pouco mais afastada fica a gaiola do pássaro do Perdão, que um dia ostentou um branco deslumbrante. Esse é mais quieto e não faz questão de aparecer. Tem vergonha do modo como foi capturado. Oferecendo o perdão a todos e por tudo, oferecendo o perdão até para o que não podia ser perdoado, um dia, se viu na situação de necessitar do perdão alheio. Contou com ele cegamente, era algo que não fizera por mal e não tivera maiores conseqüências. Mas o perdão lhe foi negado e a ave caiu. Tem uma vergonha profunda, acha que a culpa é dela por não ter perdoado ainda o suficiente. Dizer-lhe que o erro não foi seu não adiantará nada.
Hoje, o que elas tem em comum, apenas, é a certeza de que um certo pássaro rubro cairá. Tem quem o deseje, tem quem o lamente. Mas cairá.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Queria que vocês pudessem ver meu coração

E ver como o trago lanhado, pisado, cheio de cortes e hematomas. Queria que vocês pudessem ver meu coração e ver todas as marcas de sangue, as queimaduras com ponta de cigarro, as feridas purulentas e as algemas sem chave que trago comigo.
Porque com o coração alheio ninguém se importa, o coração alheio é lata de lixo, o coração alheio é cachorro sem dono. O coração alheio se pode retalhar para salvaguadar o próprio coração. O coração alheio não se ouve, não se acalenta, não se salva. O coração alheio está no peito do outro e cada um com seus problemas.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Dois pra lá, dois pra cá

"O que mesmo eu estou fazendo aqui?" Perguntou-se já deslizando na pista, ao som de antigos boleros. Ela começara a fazer dança de salão por insistência das amigas da academia. E até achara legal. Aí, o pessoal a arrastou para esse baile - um lugar onde se podia realmente dançar. Mas acontece que aquilo parecia um baile da terceira idade, todo mundo parecia muito, muito mais velho do que ela. "Essa definitivamente não é a minha praia." Foi quando aquele senhor a tirou para dançar e ela aceitou pela insistência das amigas. Só esperava que ele não viesse com gracinhas.
Reloj detén tu camino porque mi vida se apaga...
Mas ele foi muito, muito respeitoso. Dançava com a distância correta e nem mesmo ficou puxando papo. Ele dançava bem. Ela foi se deixando envolver pelo ritmo. Quando se deu conta, estava muito, muito tranqüila, com uma grande sensação de bem estar.
Então percebeu que essa sensação agradável tinha uma fonte: o perfume dele. Não apenas o que ele estava usando, mas o que exalava da pele morna sob a camisa de seda. Sem que se desse conta, aninhou a cabeça no peito dele, que era bem mais alto. Por um desses mistérios da vida, ela nunca se lembrou com exatidão do momento em que o fez, ele jamais se esqueceu.
Ojos negros piel canela, que me llegan a desesperar...
O fato é que quando se deu conta, estava encostada no peito do homem. E começou a observá-lo melhor. É verdade que ele era um coroa. Devia ter de dez a quinze anos a mais que ela. Mas ainda era um homem muito bonito. O rosto anguloso, a pele ocre que brilhava e os fartos cabelos negros, salpicados de fios prateados. Era tudo muito bonito e passava a idéia de grande dignidade.
E jeito que dançava. Como a conduzia com firmeza, como se ela fosse leve, muito leve, parecia uma pluma. Um homem que sabia como e aonde queria ir. Chegou a pensar que seria bom ter um guia desses nas noites da sua vida.
...que le dio luz a mi vida apagándola después ...
Instantes depois, começou uma seleção de twist. A dança acabou. E ela já estava apaixonada.