segunda-feira, agosto 28, 2006

Marcas



Ela era de um povo nômade e, sim, ao contrário do que diziam os antropólogos, ainda andavam pela cidade, tocando e dançando para tirar o sustento. Não porque fosse só o que restava, mas porque preferiam desse jeito.
O pai tocava algo com cordas, o irmão, um instrumento de percussão e cantavam. Então ela vinha e dançava. Com um vestido longo e rodado, sempre encarnado, roxo ou negro, ela vinha e girava, girava. Fazia doces movimentos de braços, passos matreiros que nunca iam para onde pareciam levar. A flexibilidade da cintura lhe dava um encanto de matar. Começara bem moça, como a mãe, e dançaria até morrer, exatamente como ela.
Outro detalhe adorável era a rosa que sempre levava no decote - e que os brancos da cidade achavam que era algo folclórico ou que fazia parte da dança. Não era. O que nem os seus sabiam é que ela levava sempre uma flor ao peito para lembrar que tinha o coração marcado, cheio de cortes abertos que jamais cicatrizaram. Um dia, um moço moreno, de fala mansa e jeito de gato deixara nele os veios abertos de uma pata de tigre. Entre os brancos matreiros que a requestavam ou entre seus homens que a cobiçava por esposa, levava consigo a rosa e se lembrava que o máximo que podia dar era um sorriso de quem sente muito...

sábado, agosto 26, 2006

Asas invisíveis

Então ela descobrira, depois de um tempo enorme, que o segredo de toda força possível que, é verdade, não é muita para nenhum de nós, mas enfim, é a força possível, era não prender. Não se preocupar, não tentar dominar, não tentar controlar. Não controlar o erro, a falha, a perda, a dor, o ódio. Deixá-los irem e virem como foram feitos.
E ela passou a andar solta pela cidade e a sentir de outra forma a cor do céu e o cheiro das ruas e as pessoas todas. Porque não precisava mais controlá-los com adjetivos como "fantástico", "tristonho", "delicioso", "nojento", "simpáticos"... Ela apenas os sentia como eram sem tentar classificá-los. Essa experiência libertava tanto, dava tanto prazer mesmo quando causava desconforto que foi se tornando um vício.
Quando se deu conta, cada um de seus passeios se assemelhava a um pequeno vôo.

sexta-feira, agosto 25, 2006

Do reverso


Ela golpeou sem dó. Na primeira vez, pôs a adversária, que lutava sem armas, no chão. Então ela golpeou de novo e de novo e uma vez mais. Ver o líquido vermelho jorrar sem nada que o contivesse virou um vício. No chão, dobrada sobre si mesma, ela golfava sangue, mas, estranhamente, não morria.
O que a outra não podia imaginar era que, lentamente, a morte lhe chegava certeira - escorrendo lenta pela longa lâmina da espada. Contrária a tudo que ela pudesse ser, a morte para ela era o sangue da outra.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Das luzes, do frio, do medo


Cada luz na cidade era uma lâmina e as pessoas não falavam sua língua. Sozinha, sozinha e cada coisa nesse mundo a fazia sofrer mais e mais.
Ela corria, corria, a cidade era bela, mas doía. Era tanto, tanto frio. O concreto era frio, os metais eram frios, o vento. A cidade era toda tão dura e impenetrável e as pessoas falavam aquela algaravia que ela jamais poderia entender. Um canto quente, era tudo o que ela queria: calor e um esconderijo desse mundo que doía.
Quando o enviado veio, ele não a tirou da cidade. Ele não trouxe alguém que a aconchegasse. Nem a levou para um esconderijo. Ele apenas puxou, docemente, o fio de aço que prendia todos os seus nervos e a fazia ver tudo pelo olho da tensão, do medo. O fio escorregou e escorregou por dentro dela, finíssimo e sinuoso, por um longo tempo. Quando ela abriu novamente os olhos,conseguia ver na cidade, um lar. E nos homens, seus irmãos.
E ele voou para longe com o aconchego da missão cumprida.

Instrumento

Ela havia prometido nunca mais fazer aquilo. Guardara o instrumento embaixo de um móvel e nunca mais tocou nele. Mas o amor tem razões e se move dentro da gente.

Era uma noite triste e fria e ela estava completamente sozinha. O mundo a havia estapeado novamente. Tudo nela era cacos. Foi então que, sem conseguir ouvir as promessas que fizera a si mesma, ela se agarrou a ele. Pegou-o de sob o móvel onde o escondera e o arrastou para cima da cama, com ela.
Com o instrumento, veio todo o amor e todo o sofrimento. Mas, principalmente, toda a força do sentimento. Chorou, falou com ele, colou sua pele quente de lágrimas sobre a pele dele. Colou-se. A pele parecia quente como a do amante que um dia os possuíra: a ele, instrumento; a ela, amante.
A força do sentimento foi tão grande quanto o desejo de fusão - no instrumento e nela havia ainda amor suficiente para isso. De um modo que não pode ser explicado, fizeram amor. E ela nunca mais foi encontrada - tudo o que se achou foi um derbake sobre a cama, com uma estranha rosa impressa na pele transparente. Mas a sensação que se tinha é que ela havia nascido lá dentro.